Receptores de ondas curtas: reminiscências e considerações. Parte 1
INTRODUÇÃO
De forma puramente circunstancial, no boletim Atividade DX no. 205, do DX Clube do Brasil, o colega Marcelo Toniolo faz referencia ao receptor AR-88, ao passo que na entrevista do Rogério Reis da Silva ele indica ter possuído um BC-348Q.
O maior interesse que sempre tive em eletrônica foi na área de recepção: assim, aproveitando um dia de chuva, vou elaborar um pouco sobre o assunto e sobre esses receptores em particular.
Eu me formei em Engenharia Eletrônica em Milwaukee, WIS (Modalidade Telecomunicações) basicamente devido ao extremo interesse que tenho desde os 13-14 anos de idade em ondas curtas. Na escola.trabalhei durante 2 anos no desenvolvimento teórico do circuito e nos testes do protótipo em laboratório de um oscilador de fase controlada de extrema estabilidade destinado (para variar !) a receptores profissionais de ondas curtas.
Tenho montada em casa uma oficina eletrônica e mecânica extremamente completa na qual, ao longo doa anos tenho construído 96 receptores de Ondas Curtas das mais variadas concepções, coberturas de bandas e características. Os identifico pelas minhas iniciais, seguidas de um número seqüencial; assim o ultimo é o GP-96.
O meu preferido e o que uso regularmente é o GP-89, especialmente projetado para a escuta de bandas tropicais com cobertura continua de 2 a 18 mHz; tem leitura digital eletrônica direta, filtro a cristal, com banda passante de 2,1 kHz e uma sensibilidade (medida a 4 mHz) de –124 dB. A caixa é de aço inoxidável, assim como o painel frontal, que tem a identificação dos comandos gravadas com pantógrafo em baixo relevo e acabado com jato de areia para não dar reflexos de luz nos olhos do operador. As dimensões (em mm) são 137W x 51H x 140D . Todos os componentes são de padrão militar; a sintonia é por redutor de Muffet (UK) blindado, tipo split-gear (engrenagens compensadas com molas para assegurar ausência de backlash).
Comecei a construir meus próprios receptores com o objetivo de otimizar o design para escuta de ondas curtas, visto que até 1985 aproximadamente, era impossível se encontrar receptores comerciais de características competitivas com os meus homebuilt.
Como parte deste interesse, reuni ao longo dos anos uma biblioteca extensa com folhetos técnicos, catálogos, manuais, esquemas e características dos receptores de ondas curtas fabricados pelas grandes empresas mundiais.
Este preâmbulo pode parecer pouco modesto; entretanto ele é o espelho da realidade e achei que seria útil antes de abordar os temas que seguem.
1. Receptor RCA AR-88
Foi desenvolvido em 1940 pela RCA atendendo a especificações militares: mede (mm) 490W x 280H x 490D com um peso original de (versão original com gabinete) de 36 kg; a versão para rack era eletricamente idêntica, mas aproximadamente 8 kg mais leve.
O receptor cobre de 535 a 32000 kHz em 6 bandas com sintonia por engrenagens paralelas de alta redução, proporcionando para época excelentes condições de sintonia . O receptor tem 14 válvulas, a maioria metálicas (então consideradas modernas pela blindagem que ofereciam) com 2 estágios de RF e 3 estágios de FI.
Na época os sistemas de dupla conversão (para reduzir as interferências causadas pela imagem do sinal de entrada) era ainda desconhecida e uma técnica muito comum era de amenizar essa situação usando FI de freqüência elevada; assim, o AR 88 usa 735 kHz, ficando a cargo do filtro a cristal a obtenção de uma banda passante estreita (até 1,5 kHz).
A sensibilidade original é de 2,2 µ V (para 6 dB S/N) em antena a 5,0 mHz. O receptor tem alimentação em 110 VAC, tendo sido produzido em várias versões: o AR88D é a versão de gabinete; a versão AR88LF é a versão com cobertura de freqüências baixas para a Marinha (73 a 535 kHz), sendo essencialmente a mesma nos modelos posteriores CR-91 e CR-91A . O AR-88 mudou para CR-88 em 1946 e para CR-88A em 1947; a ultima versão é CR-88B , que tem a adição de um calibrador a cristal de 50 kHz, tendo sido lançada em 1951 e parado de produzir em 1953 . Marginalmente, cabe acrescentar que, a partir de 1950, a RCA tinha lançado o receptor SSR-13 , infinitamente mais moderno e melhor que o AR-88.
O AR-88 era o mais sofisticado e o melhor receptor usado na 2a.Guerra Mundial, sendo geralmente encontrado em centros de telecomunicações semifixos (i.e. comandos regionais, etc) raramente tendo sido usado de forma móvel ou marítima pelos EEUU, fazendo com que ele fosse uma raridade no mercado de surprus americano do pós-guerra . A Inglaterra recebeu uma quantidade significativa desses receptores a partir de 1941, que foram usados em bombardeiros da Real Força Aérea com o código BC-1556, fazendo com que no surprus pós-bélico daquele país esses receptores fossem encontrados com mais freqüência, se tornando um preferido dos SW’s e dos radioamadores no período 1945-1960 aproximadamente.
Tive o privilégio de possuir e operar durante 4 ou 5 anos um AR-88 tipo rack , que apareceu num armazém de sucata militar do Norte da Itália, aparentemente abandonado por tropas inglesas, que o consideravam sucata sem possibilidade de recuperação; algo devia ter caído ou colidido com o condensador variável da sintonia principal, amassando-o completamente e deixando-o travado.Levei mais de 3 meses para remover esse condensador variável de 4 seções, desmontar todas as placas, planifica-las uma por uma prensando-as entre 2 lâminas de chumbo e remonta-lo. Seguramente não é a tarefa que teria coragem de enfrentar de novo, mas o variável ficou perfeito . O receptor foi recalibrado e passei a ter um grande receptor, que era admirado por todos os colegas que tinham uma oportunidade de sintoniza-lo.
A luz da minha experiência de hoje na escuta de ondas curtas, o desempenho desse receptor é descrito a seguir:
Características favoráveis
a) O receptor tinha boa sensibilidade e talvez o único filtro a cristal da época que tinha laterais simétricas da banda passante; também a perda de inserção do cristal era pequena.
b) Boa qualidade e nível de áudio
c) Excelente (para época) resposta de AVC
d) Pouca manutenção (geralmente troca de válvula retificadora); considerar que na época eu operava 80-100 hr/mês e pra um receptor valvulado esse era um uso intensivo. Isso melhorou muito substituindo a retificadora 5Y3 original por uma 5U4 mais moderna e de maior potencia.
e) O band-spread era excelente e, após ter preparado as curvas de calibração do receptor, a leitura de freqüência era boa para época.
Defeitos
a) Receptor enorme e pesado;
b) Como todos os receptores da época, o receptor “corria” de freqüência durante o aquecimento inicial estabilizando-se após 1 hora ou 1 hora e ½ , mesmo após esse período, especialmente em freqüências acima de 15 mHz, a instabilidade era visível (especialmente quando operado em condições de seletividade estreita);
c) Acima dos 15 mHz o ruído de fundo era muito elevado, em decorrência das válvulas usadas;
d) A leitura de freqüência era trabalhosa, demandando um oscilador externo a cristal de 100 kHz, seguido de um trabalho de interpolação nas curvas de calibragem;
e) Devido a enorme demultiplicacão do sistema de sintonia (necessária para a sintonia fina das freqüências altas) a excursão duma extremidade da banda até outra era demorada.
2- RECEPTOR BC-xxx
Baseado numa especificação do Signal Corps do Exército dos EEUU, o receptor foi originalmente desenvolvido pela Bendix em 1939 como BC-224 .
Com o crescimento do esforço de guerra, o receptor passou subseqüentemente a ser fabricado em paralelo por outras empresas, notadamente a Zenith; rapidamente evoluiu para o modelo BC-342 e finalmente o BC-348. Deste ultimo há várias versões, sendo a mais freqüente a –J –N e –Q com mínimas diferenças entre elas.
O receptor era relativamente pequeno para época (400W x 250H x 350D mm), pesando 11 kg sendo construído inteiramente em alumínio e destinado primariamente a uso móvel e a Força Aérea, tornando-se o receptor principal dos bombardeiros Americanos B-17, B-24, B-25 e B-29; após 1942, passou a ser usado de forma extensa em tanques e carros blindados.
Foi construído em quantidades enormes, tão assim que em meados da década de 70 (i.e’ 30 anos após o fim da 2a.Guerra Mundial) era ainda possível compra-lo nos EEUU, em lojas de surprus, zero km , dentro da embalagem original, com os saquinhos de sílica-gel para protege-lo da umidade.
Aos 14 anos comprei o meu 1o. BC-348, com o qual comecei a escutar ondas curtas: a qualidade mecânica da “maquina” era soberba, dando a sensação de dirigir um carro de luxo, sendo toda a sintonia efetuada por engrenagens.
Eletricamente o receptor é limitado: tem apenas 8 válvulas, cobertura de 3,5-18 mHz, FI de 915 kHz e uma seletividade lastimável: o cristal usado na FI era muito primitivo, com uma perda de inserção enorme e banda passante muito estreita (claramente projetado para uso em telegrafia).
O BC-348 destinava-se a uso móvel, sendo equipado de fábrica com um DynaMotor de 28 VDC: assim, para uso caseiro, o receptor precisava imediatamente de cirurgia, removendo o DynaMotor e substituindo-o com um transformador de alimentação e uma válvula retificadora (e, dependendo da ambição, uma válvula estabilizadora de tensão).
Fiquei com este receptor alguns anos, até quando conclui que havia opções mais convenientes para ouvir ondas curtas. Porem, devido a um ataque de saudosismo, comprei outro BC-348-J nos EEUU em 1974, na embalagem original, selada, tendo ficado guardado junto com outros troféus, que lembram épocas de DX muito gratificantes.
Características favoráveis
a) Construção mecânica de 1a. classe (excetuada a chave de onda de fenolite, em vez de cerâmica como no AR-88);
b) Compacto/leve/ocupa pouco espaço sobre a mesa;
c) “Feeling” muito bom;
d) Sistema de sintonia mecanicamente excelente;
e) O receptor aceitava recalibragem na 1a. banda para permitir a cobertura da faixa dos 90 m de SWBC.
Defeitos
a) o receptor não tinha sido concebido para ter fonte de alimentação de AC embutida na caixa sem ventilação: a variação de freqüência da fase de aquecimento era enorme;
b) o espalhamento de freqüência no dial é pequeno e a leitura de freqüência (mesmo depois da estabilização após o aquecimento e com calibrador 100 kHz a cristal externo) é péssima , não sendo possível ler freqüências de forma segura até o ultimo kHz em praticamente nenhuma banda.;
c) seletividade muito ruim, completamente inadequada para uma boa operação em ondas curtas;
d) A sensibilidade e moderada, sendo da ordem de 4 µ V em antena;
e) A posição do knob de sintonia não é ergonomicamente ideal.
Com isso teriam sido comentados os 2 receptores citados no Boletim 205. Como estamos numa seção de saudades, acrescento mais 2 casos a lista.
3- RECEPTOR Hammarlund HQ-180
A Hammarlund faz parte das lendas dos fabricantes de receptores dos EEUU: fundada em 1910, quando começou a produzir componentes eletrônicos de qualidade excepcional, teve a sua época de ouro entre 1935 e 1965, quando foi um dos maiores e mais reputados fabricantes de receptores de comunicações dos EEUU..
A partir de 1965, a empresa entrou em decadência e foi absorvida pela Cardwell Capacitors (1971) e em parte pela Pax Msg., deixando de existir como empresa independente desde 1976.
Seus receptores mais famosos no meio radioamadoristico e de SWL’s foram os da serie HQ-xxx; na área profissional, ela teve receptores notáveis da família SuperPro-xxx, da qual o modelo mais bem sucedido foi o SuperPro-600 (SP-600), produzido entre 1951 e 1972.
Lembro a emoção do dia em que recebi em caixa original selada o meu HQ180, na época era o topo de linha da Hammarlund e dos corujas norte-americanos: o receptor tinha 18 válvulas miniaturas e vários semicondutores, com cobertura continua de 540-30000 kHz em 6 bandas.
Tem um dial de sintonia principal e um dial secundário para banda espalhada. O painel frontal é maravilhoso, de alumínio fundido sob pressão e pintado em cor cinza claro e escuro para dar contraste. As dimensões do receptor são (mm) 482W x 266H x 330D, pesando aproximadamente 16 kg.
O receptor tem dupla conversão até 7,85 mHz, quando passa para tripla conversão; o uso duma ultima FI de 60 kHz permite uma seletividade (tipo LC) excepcional, com pouca atenuação do sinal.
O receptor é extremamente sensível (0,7µ V para -10 dB S/N) e com excelente qualidade de áudio.
Foi com este receptor que tive uma das épocas mais produtivas e gratificantes de toda minha carreira de “coruja”.
Características positivas
a) Boa sensibilidade e seletividade;
b) Excelente rejeição de imagens;
c) Calibrador a cristal de 100 kHz embutido, permitindo, após preparar as curvas de calibragem do receptor, leitura segura de freqüência até o ultimo kHz em todas as bandas abaixo de 20 mHz.;
d) Excelente resposta de AVC;
e) Boa qualidade de áudio;
f) Construção mecânica/qualidade de componentes ótima, demandando pouca manutenção;
g) Posição dos knobs de sintonia ergonomicamente muito boa, permitindo operar com o punho apoiado sob a mesa.
Defeitos
a) Como todos os receptores da época, sofria variação de freqüência na fase de aquecimento;
b) O espalhamento de freqüência varia de banda para banda: a operação pior era na banda dos 49m que estava no limite do confortável;
c) Caro: o preço original era da ordem de US$ 480,00 (que equivalem hoje, pela tabela do Ministério do Comércio dos EEUU, a US$ 2.400,00)
Por Jack Perolo
Receptores de ondas curtas: reminiscências e considerações. Parte 2
Excelente trabalho que transcrevi para meu acervo.